Dois anos É uma razão inconfessável, confesso. A razão odiosa do namorado que rejeita a namorada quando sabe que ela foi estuprada. No meu caso, a atitude machista e irracional tem uma atenuante: eu estava lá, eu vi o ato, não posso tirá-lo da cabeça. Entre todos os motivos para não ter voltado a Nova York depois do 11/9, este é o pior e o mais forte. Eu presenciei o estupro. Vai levar algum tempo até eu poder encará-la com naturalidade. Eu sei, não foi culpa dela. Toda aquela ostentação, aquela arrogância, tão rica, a pobrezinha — não eram razões para atacá-la daquele jeito. Dizem que ela ficou traumatizada, mas fora isso não mudou muito. Tudo que eu gosto nela continua. Mas, sei não. Sou um desalmado, está certo. Mas não posso. Ainda não dá para encará-la. Tínhamos uma longa história. Eu a conheci com 9 anos (ela devia ter uns 300), numa ocasião especial. Acabara a guerra mundial — a 2a, a boa — e ela estava na rua, comemorando. Lembro de vê-la no Times Square, dançando e beijando marinheiros. Depois, quando morei quatro anos em Washington, a cinco horas de ônibus dela, eu a visitava com frequência, sem dinheiro, mas com todo o vigor da adolescência. Numa dessas visitas, vi o Charlie Parker e o Dizzy Gillespie tocando juntos no Birdland. Ou já contei isso? Tivemos muitas experiências juntos. Eu estava lá quando mataram o John Lennon, por exemplo. E estava lá quando lhe aconteceu o inimaginável, o que nunca antes tinha lhe acontecido, nem nas guerras. Ela foi atacada. Eu estava longe do local, mas senti o seu terror, comovi-me com a sua comoção, fui solidário com a sua dor — e tratei de dar o fora o mais rápido possível. E desde então não voltei mais. Dois anos. Pessoas que vêm de lá me contam que, fora as suas medidas de segurança, ela continua a mesma. Tenho saudade dela, mas talvez eu já estivesse mesmo chegando naquela fase da vida em que o homem começa a ficar, assim, mais europeu, uma condição que não tem a ver com geografia e sim com as suas prioridades e a cor das suas têmporas. No fim, não foi só o que o Bin Laden fez com ela sob os meus olhos, talvez já estivesse na hora do rompimento. Só não precisava ser tão explosivo. (DOIS ANOS, de Luis Fernando Veríssimo, publicado no jornal 0 Estado de S. Paulo, em 11 de setembro de 2003, Caderno 2. p. D2; © by Luis Fernando Veríssimo.)
1. Costuma-se dizer que a mídia abre janelas para o mundo. Por ela, ficamos sabendo dos principais acontecimentos nacionais e internacionais nas diferentes atividades comunicativas. Na mídia impressa, as notícias, reportagens etc. tendem a ser janelas informativas, e os artigos, editoriais, resenhas, charges etc. são janelas opinativas. A crônica também circula nessa esfera, mas com características bem diferenciadas. a) Qual é o ato histórico que se recupera na crônica de Verissimo? b) Quando e onde esses fatos ocorreram? c) Com quem o narrador está dialogando?
2. Procure reconstruir o percurso do narrador e o percurso da cidade numa sequência de fatos históricos antecedentes a 11 de setembro de 2001.
3. O narrador-personagem apresenta, aparentemente, um caso de estupro da namorada. Durante a leitura do texto, essa situação adquire outros sentidos. Explique-os, considerando as expressões: 'ela devia ter uns 300 [anos]”; “fora as suas medidas de segurança, ela continua a mesma”; “não foi só o que o Bin Laden fez com ela sob os meus olhos”.
4. O cronista usa o recurso da linguagem metafórica ao comparar “estupro” a ato terrorista, “namorada” à cidade de Nova York e “o narrador” aos brasileiros. O que há de comum entre cada dupla de elementos?
5. Ao recuperar o ato terrorista de 11 de setembro de 2001, o cronista trouxe a perspectiva de um cidadão brasileiro em terras estadunidenses. Que diálogo ele estabeleceu? Discuta com dois colegas e exponha suas idéias.
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1. a) O autor se refere aos atentados contra as torres gêmeas do World Trade Center. b) Ocorrido em Nova York, nos Estados Unidos da América, em 11 de setembro de 2001. c) O narrador dialoga conosco, leitores.
2. O narrador fala do fim da Segunda Guerra Mundial, na década de 1940, e do assassinato de John Lennon, em 1980, fatos que ocorreram antes dos atentados. Também comenta ter visto o show de dois jazzistas, que devem ter ocorrido antes da segunda metade da década de 1950, já que Charles Parker morreu em 1955.
3. Percebe-se, com essas declarações, que não se trata realmente de um relacionamento de um casal, de um homem com sua namorada, mas de uma relação com a cidade de Nova York, que sofreu os atentados.
4. A cidade, assim como uma namorada, é objeto de afeto, amada pelo narrador. Estupro, assim como o atentado terrorista, é um ato de extrema violência, invasivo, desmoralizante. O narrador é como o turista brasileiro que fica temeroso de viajar a locais antes cobiçados, dada a instabilidade política do mundo atual, que ameaça a segurança dos grandes centros turísticos.
5. Ao ser um brasileiro em terras estrangeiras, o narrador é um turista que admira o local que visita, que estabelece uma relação íntima com ele, de afeto e admiração. Mas ao mesmo tempo, não íntima o suficiente para ser um "casamento."
2. O narrador fala do fim da Segunda Guerra Mundial, na década de 1940, e do assassinato de John Lennon, em 1980, fatos que ocorreram antes dos atentados. Também comenta ter visto o show de dois jazzistas, que devem ter ocorrido antes da segunda metade da década de 1950, já que Charles Parker morreu em 1955.
3. Percebe-se, com essas declarações, que não se trata realmente de um relacionamento de um casal, de um homem com sua namorada, mas de uma relação com a cidade de Nova York, que sofreu os atentados.
4. A cidade, assim como uma namorada, é objeto de afeto, amada pelo narrador. Estupro, assim como o atentado terrorista, é um ato de extrema violência, invasivo, desmoralizante. O narrador é como o turista brasileiro que fica temeroso de viajar a locais antes cobiçados, dada a instabilidade política do mundo atual, que ameaça a segurança dos grandes centros turísticos.
5. Ao ser um brasileiro em terras estrangeiras, o narrador é um turista que admira o local que visita, que estabelece uma relação íntima com ele, de afeto e admiração. Mas ao mesmo tempo, não íntima o suficiente para ser um "casamento."
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