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Nossos antepassados tinham uma noção de higiene muito diferente da nossa. Um pedaço de sabão era bem inestimável. Que o diga certo Baltasar Dias, em 1618. Ao ver que fora roubado do seu, trazido com dificuldade na caravela que o trazia da cidade do Porto para Pernambuco, deu de “dizer palavras de cólera e que o Diabo o levasse de seu corpo”, numa explosão de rara fúria. Conclusão? Foi denunciado à Inquisição por blasfêmia.
Banhos? Só em caso de doença. D. João VI seria o melhor exemplo. Contam biógrafos que picado por um carrapato na fazenda de Santa Cruz, onde passava o verão, teve a perna inflamada e muita febre. Os médicos lhe recomendaram banho de mar. O rei tinha pavor de ser atacado por peixes ou crustáceos e por isso, mandou construir uma caixa de madeira, dentro da qual era mergulhado nas águas da Praia do Caju, nas proximidades do Palácio de São Cristóvão. A caixa era uma banheira portátil, com dois varões transversais e furo laterais por onde a água do mar podia entrar. O rei costumava ficar imerso ali dentro por alguns minutos, com a caixa imersa e sustentada por escravos. O iodo marinho ajudaria a cicatrizar as feridas. O uso de caixas para banhos era conhecido das cidades europeias, cortadas por rios.
Esses mergulhos improvisados na Praia do Caju, a conselho médico são a única notícia que se tem de um banho de D. João nos treze anos em que permaneceu no Brasil. Ao que tudo indica, o banho de imersão era coisa de estrangeiros no século XVIII. Coisa de “gosto inglês” como comentou Juan Francisco de Aguirre, ao observar que apenas nas chácaras sob influência estrangeira, se contava surpreendentemente com “lugares para banhos com abundância de água”.
Passadas décadas, Luccock complementou que as abluções não eram “nada apreciadas pelos homens. Os pés são geralmente a parte mais limpa as pessoas. Os rostos, mãos, braços, peitos e pernas que, todos eles andam muito expostos em ambos os sexos, raramente recebem a benção de uma lavada”. Os inventários confirmam: toalhas “para enxugar” só as “de cabeça”, “de rosto” ou “de mãos”. Mais nenhuma.
A sujeira causava doenças de pele. Em sua correspondência com familiares em Portugal, o vice-rei, marques de Lavradio se vangloriava da saúde, acrescentando que “conserva-se bem sem sarnas, nem perebas, moléstia que aqui padecem todos e só não tenho escapado aos bichinhos do pé, porque estes me têm perseguido barbaramente. ”.
De origem latino-americana esta espécie de pulga ganhou nomes populares: zunja, xiquexique, jatecuba. Habituado à pele mais fina e tenra entre os dedos, era encontrado em currais, chiqueiros e praias. O mercenário alemão Carl Seidler foi uma das vítimas desses “imundos hóspedes”: “Ainda me lembro bem que havia soldados que extraíam 30 a 40 saquinhos desse bicho, cheio de ovos, cada um dos quais saquinhos deixava um buraco do tamanho de uma ervilha, extração muito dolorosa e já no dia seguinte número igual se alojara, notadamente nas unhas e nos calcanhares. Para evitar isso, muitos de nós limitávamos a abrir o saquinho cheio daquela criatura do diabo e lhe deitávamos encima um pouco de mercúrio”.
A sensibilidade olfativa dos colonos estava longe daquela que já se instalara na Europa, pois mesmo para limpar, usavam-se produtos fétidos. Os tintureiros, por exemplo, misturavam urina e vinagre para fixar as cores dos tecidos e couros. Lavava-se roupa com folhas saponáceas e passava-se nela bosta de cavalo para fixar as cores. Para tirar manchas, usava-se “fel de boi” ou cebola bem esfregada. A fabricação de sabão que, aliás, foi importado da África até 1780, consistia numa mistura de gordura animal e vegetal com um tipo de soda cáustica. Tomavam-se cinzas resultantes da queima de algumas madeiras e molhando-as sobre um pano, se deixava que gotejassem lentamente. Sebos e carnes fervidas proviam a gordura animal. Já o uso do coco, permitia a fabricação de uma gordura mais leve e refinada. Daí no entender de alguns autores, a multiplicação de coqueiros, sobretudo na região de Salvador, onde africanos ensinaram aos portugueses a fazer sabão.
O mau cheiro dos produtos de limpeza não impedia, contudo, que se tomassem certos cuidados. Contou-nos Debret, em 1816:
“As lavadeiras brasileiras, aliás, muito mais cuidadosas do que as nossas, têm a vaidade de entregar a roupa não somente bem passada e arranjada em ordem, dentro de uma cesta, mas ainda perfumada com flores odoríficas”. Asseio, não era se lavar. Mas vestir roupa limpa! Para combater o mau-cheiro das vestes, se usava a bolsa escrotal do jacaré. “Melhor do que qualquer animal almiscareiro”, recomendava Knivet ou ainda Gandavo: “qualquer roupa a que chegam os testículos, o cheiro fica pegado por muitos dias”.
Mas, roupa limpa todos os dias? No caso dos padres jesuítas a resposta seria, não! Só trocavam de camisa às quartas-feiras e sábados.
Texto de Mary del Priore. Baseado em “História da Gente Brasileira: Colônia”, recém lançado pela Editora LeYa.