TEXTO I
Lembrava a professora que primeiro reconhecera o grande peso da casa paterna. Ela era
magra, um pouco lenta e desajeitada nos gestos, mas sagaz ao “ler as pessoas”, como dizia.
Naquele dia, com os óculos no alto da cabeça, sentou-se na larga poltrona em que passava
horas debruçada sobre um livro, esquecida que estava do burburinho da vida lá fora.
Quando cheguei, me apontou a cadeira onde eu devia sentar para ouvir o que ela tinha a me
dizer. Parecia o dia em que a classe toda tinha feito a desfeita de pôr cola na sua cadeira de
mestra. Ao sentar, a gargalhada explodiu e, com ela, o gesto tão conhecido de avisar que a
coisa era séria: arrastar os óculos para o alto da cabeça. Sentada já estava. Desconfiada,
assim ficou, até o término da aula, quando todos deixaram a sala, já arrependidos da
brincadeira. Ninguém quis saber o que aconteceu quando se levantou. Naquele dia, lá
estava, e eu esperando o que ouviria, certamente um sermão.
Desenhou-me: a filha mais velha, sempre enfrentando deveres, atenta às necessidades dos
pais, da avó, dos irmãos mais novos. Ou a seus desejos? Sim senhora, responsável por
preservar as tradições da família, que há tempo sabia que haviam deixado em suas mãos.
“Está na hora de alçar voo, descobrir sua identidade, construir sua própria história”, disse
antes de me anunciar sua aposentadoria. Chorei. À noite, enfrentei o espelho do meu quarto.
Via em mim os traços da herança, o rigor na postura, os vincos na testa projetados pelas
constantes preocupações. Os olhos eram meus, achava vivos, bonitos, curiosos. O que via
não era o que diziam de mim no mercado. Menina altiva, parece que tem o rei na barriga.
Nem o que ouvira uma vez numa festa junina da igreja: Não conte com ela, nunca tem
tempo pra ajudar ninguém. Menina preguiçosa, insossa, sabe-se lá no que vai dar.
(Mariana Assis, inédito)
(PUCCamp-SP/2019) No fragmento,
(A) o narrador em terceira pessoa inicia o relato apresentando as memórias da protagonista,
o que evidencia que ele se vale da onisciência.
(B) detalhadas reminiscências da personagem que narra levam o leitor a presenciar instintos
fatos vividos por ela, em relato que se desenvolve cronologicamente.
(C) o narrador-personagem, ao entregar-se a suas lembranças, remete a tempos e espaços
distintos, em relato em que detalhes do espaço são oferecidos em associação com as ações
rememoradas.
(D) o início do relato das memórias se dá por estímulo do que o narrador viu ao chegar ara
conversar com a professora: ela sentada na poltrona, com os óculos no alto da cabeça.
(E) o relato privilegia o que é trazido pela própria voz da professora, o que justifica que o
desenvolvimento da narrativa se dê pelo desdobrar contínuo de cada manifestação direta da
mestra.
Respostas
A alternativa correta é a letra C: o narrador-personagem, ao entregar-se a suas lembranças, remete a tempos e espaços distintos, em relato em que detalhes do espaço são oferecidos em associação com as ações rememoradas.
O narrador do texto é classificado como narrador personagem, pois participa das ações. Por isso não é considerado um narrador que usa a terceira pessoa do singular.
O uso da primeira pessoa do singular, marcando o narrador personagem, fica evidente em:
"Quando cheguei, me apontou a cadeira onde eu devia sentar para ouvir o que ela tinha a me".
Cheguei é conjugado na primeira pessoa do singular do pretérito perfeito.
Ex: Eu cheguei.
A narradora apresenta tempos e espaços distintos no texto. Inicia falando sobre a professora na escola, depois fala sobre o seu quarto.
"Chorei. À noite, enfrentei o espelho do meu quarto".
ABraços!