Respostas
Para analisar como a questão das origens - entendida como momento fundador que delimitaria um núcleo identitário perene - é pensada na música popular brasileira, podemos nos concentrar basicamente em duas grandes correntes historiográficas: a primeira diz respeito à discussão quanto à "busca das origens", ou seja, a raiz da "autêntica" música popular brasileira. A segunda corrente historiográfica procura criticar a própria questão da origem, sublinhando os diversos vetores formativos da musicalidade brasileira, sem necessariamente, buscar o mais autêntico.
Desde já, colocamo-nos nesta segunda perspectiva, na medida em que, para nós, deve-se problematizar o problema das origens, como objeto da reflexão historiográfica. Isto não significa fazer tábula rasa da vigorosa tradição musical que se constituiu sob o signo da música popular brasileira, mas tentar desenvolver um pensamento analítico que dê conta da pluralidade, da polifonia de sons que constituíram as bases sociológicas e estéticas da nossa música, sobretudo de matiz urbana. Ao longo deste artigo, tentaremos mapear e entender as referências e projetos que orientaram os autores que vem marcando o debate historiográfico em questão. Entendemos a categoria da autenticidade, não como um traço inerente ao objeto ou ao evento "original", mas uma reconstituição social, uma convenção que deforma parcialmente o passado, mas que nem por isso deve ser pensada sob o signo da falsidade1. É sob este prisma que tentaremos pensar o problema das "origens" na historiografia da música popular brasileira.
O impulso para a produção historiográfica sobre a questão da música no Brasil, conforme Arnaldo Contier, intensificou-se com o debate no seio do modernismo, sobretudo nas obras de Mário de Andrade e Renato de Almeida, ao longo dos anos 20 e 302. Alguns eixos de problemas se entrecruzavam: a) o problema da brasilidade; b) o problema da identidade nacional; c) os procedimentos pelos quais deveria ser pesquisada e incorporada a "fala do povo"(folclore); d) os projetos ligados aos modernismos musicais. Para Mário de Andrade, a preocupação em encontrar uma identidade musical e nacional para o Brasil vai remeter à fixação dos traços da música popular desde finais do século XVIII, quando já podiam ser notadas "certas formas e constâncias brasileiras" no lundu, na modinha, na sincopação3. Mais tarde, ao longo do século XIX, verificou-se a fixação das danças dramáticas, como os reisados, as cheganças, congos e outras manifestações folclóricas. Finalmente, em relação às primeiras décadas do século XX, Mário de Andrade afirmava que "a música popular brasileira é a mais completa, mais totalmente nacional, mais forte criação de nossa raça até agora"4. Nessa altura, segundo Mário de Andrade, a modinha já se transformara em música popular, o maxixe e o samba haviam surgido, formaram-se conjuntos seresteiros, conjuntos de "chorões" e haviam se desenvolvido inúmeras danças rurais. A arte nacional estava então feita na "inconsciência do povo", sendo a arte popular a alma desta nacionalidade. Daí a necessidade das pesquisas folclóricas propostas, como um meio para entrar em contato com as bases da cultura popular. Esse procedimento indicava a necessidade de partir do primitivo (folclore), seguir uma linha evolutiva, acompanhando as vicissitudes do elemento "civilizado" (as técnicas adquiridas), mantendo porém um núcleo central que demarcava uma "alma nacional".
Neste ponto, cabe um breve parênteses. Em seu estudo sobre o modernismo e a música popular, Santuza Cambraia Naves argumenta que, para Mário de Andrade, o popular estaria valorizado na medida em que iria oferecer a matéria-prima para se esboçar os traços gerais da identidade brasileira5. Neste sentido, o folclore contribuiria para a manutenção da identidade nacional na medida em que exerceria uma pressão na direção do passado. A busca da tradição, cotejada com a perspectiva da modernidade, deveria construir um idioma musical próprio, irredutível ao culto folclorista per si.
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