A
imagem
ao
lado
retrata
a
questão
da
miscigena-
ção de nosso país. Ela é de uma pintura do século
XIX chamada A redenção de Cam, que mostra très
diferentes gerações de uma família, sendo a avó ne-
gra, a mãe, parda, e a filha, branca. Analise a obra
e estabeleça uma relação entre o título da obra, a
imagem retratada e o preconceito associado à con
da pele.
Respostas
Resposta:
Obra consagrada por tratar de questões raciais e populares no século XIX, a tela A Redenção de Cam, de Modesto Brocos (1852-1936), ainda hoje suscita polêmicas, sobretudo no que se refere a sua recorrente utilização como ilustração em teses favoráveis ao branqueamento da população brasileira.1 A pintura, que recebe a medalha de ouro no Salão Nacional de Belas Artes de 1895 e tem importância central para a compreensão dos rumos que estão sendo tomados pela arte brasileira nas últimas décadas do século XIX e início do XX, reúne alguns aspectos importantes a serem destacados como o anseio de configuração de uma escola de pintura vinculada a questões nacionais, sem romper, no entanto, com modelos já arraigados na academia.
A simples escolha do tema a ser retratado explicita essa contradição interna presente em A Redenção de Cam. Como o próprio título diz, a obra faz referência direta à passagem bíblica de Cam, filho de Noé, castigado por ter olhado o pai nu e bêbado. Na verdade, o castigo divino é aplicado a seu filho Canaã, amaldiçoado como "servo dos servos". O fato de Cam ser apontado na Bíblia como suposto ascendente das raças africanas faz com que tal passagem comece a ser usada pelos defensores da escravidão negra como um argumento claro de que tal sistema não seria contrário aos desígnios de Deus.
Essa justificativa torpe faz com que muitos vejam a obra de Brocos como uma reafirmação dessa corrente racista. No entanto, chama atenção o fato de o artista promover na realidade uma inversão da passagem bíblica. Mesmo que carregada, sem dúvida, do espírito de seu tempo, que vê na dissolução das raças uma possibilidade de redenção, a obra trata de uma questão pouco aceita nessa época como tema artístico passível de ser representado. O que interessa a Brocos não é a maldição e sim a redenção de Cam. Não se trata de uma cena bíblica, mas de uma hibridação entre a alegoria religiosa - expressa no título - e um realismo de caráter social. Em outras palavras, ele procura figurar uma possibilidade de reinício, de configuração de um modelo de miscigenação entre as raças, uma discussão extremamente importante durante a Primeira República (1889-1934).
A cena que ele opta por retratar, com cuidadoso apuro técnico e riqueza de detalhes que garantem um aspecto de grande fidelidade naturalista, quase fotográfica, destaca três gerações distintas. No campo esquerdo, vê-se uma velha negra, com as mãos erguidas para o céu em agradecimento. No centro, uma bela mulata, que tem sobre os joelhos o filho quase branco. Este, por sua vez, olha para a avó - e para a sua origem - com simpático interesse. As mãos e os olhares desses três personagens compõem um fluxo circular que garante forte dinamismo e coerência interna à tela. Esse movimento é amplificado pelas folhas recurvadas da palmeira, ao fundo, e pelo fato de esse segmento ter na parte posterior uma parede amarelada de pau a pique e um chão de terra batida, quase do mesmo tom.
A metade direita da pintura (segmentada em duas partes quase idênticas por uma linha vertical central formada pelo batente de madeira, pela criança que está no meio das atenções e se prolonga na delicada franja do xale materno) é ocupada por um rapaz que observa satisfeito, com um pequeno desvio de torso, aquele que provavelmente é seu filho. A brancura de sua tez é reforçada por ele estar diante de um vão de porta e ter, ao fundo, uma sombreada imagem de interior. Seus pés, que estão virados cautelosamente para o lado oposto do núcleo das mulheres, pisam não mais a terra batida, mas um calçamento de pedras que, mesmo precário, revela certo anseio de melhores condições de vida. O uso de tons rebaixados de marrom e amarelo, como que saídos da terra, contribui para dar unidade e movimento interno à tela.
Surpreende também o preciosismo com que estão representadas as fisionomias e as vestes, que leva muitas vezes a crítica a considerar a pintura de Brocos um tanto fria e amaneirada, ainda mais se levar em conta que o artista tem grande importância no movimento de reformulação e modernização da academia brasileira e mantém contato direto com as experiências de vanguarda desenvolvidas na Europa, com conhecimento das técnicas impressionistas e pós-impressionistas, como o pontilhismo de Georges Seurat (1859-1891), seu companheiro de estudos na França.
Como escreve o próprio Brocos, num trecho que parece ilustrar o trabalho minucioso em A Redenção de Cam, "todos os elementos que entram em uma composição devem ter por fim a unidade do conjunto, e fazer com que todas as figuras, os movimentos variados, as direções das linhas, tudo tenha por fim ajudar a ação que se quer representar. Urge que os personagens em cena não se prejudiquem mutuamente [...] conciliando assim a variedade com a unidade".2