• Matéria: Português
  • Autor: ketleenc
  • Perguntado 6 anos atrás

Fazia dois anos que não me sentava numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estivessem por todo esse tempo sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas começava a suar frio folheando velhas revistas na antessala e me escafedia antes de ser atendido. Na última ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo – tem uns seis meses –, quando ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se do dente para o bolso. 

— Não quero uma dentadura em ouro com incrustações em rubis e esmeraldas – esclareci –, só preciso tratar o canal. 

— É esse o preço de um tratamento de canal! — Tem certeza? O senhor não estará confundindo o meu canal com o do Panamá? 

TRILHAS DE APRENDIZAGENS 48 

Adiei o tratamento. Tenho pavor de dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas a Odontologia permanece uma atividade medieval. Para mim não faz diferença um “pau de arara” ou uma cadeira de dentista: é tudo instrumento de tortura. 

Desta vez, porém, não tive como escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se transformado em meros figurantes dentro da boca. Ao estourar o pré-molar do lado direito, fiquei restrito à linha de frente para mastigar maminhas e picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para esquilo. 

A enfermeira convocou-me na sala de espera. Acompanhei-a, após o sinal da cruz, e entramos os dois no gabinete do dentista, que, como personagem principal, só aparece depois do circo armado. 

— Sente-se – disse ela, apontando para a cadeira. — Sente-se a senhora – respondi com educada reverência –, ainda sou do tempo em que os cavaleiros ofereciam seus lugares às damas. 

Minhas pernas tremiam. Ela tornou a apontar para a cadeira. — O senhor é o paciente! — Eu?? A senhora não quer aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro? Fique à vontade. Sou muito paciente. Posso esperar aqui no banquinho. 

O dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como adoraria vê-lo sentado na própria cadeira extraindo um siso incluso! Mal me acomodei e ele já estava curvado sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de estímulo ou reconforto. 

Foi logo ordenando: — Abra a boca. Tentei, mas a boca não obedeceu aos meus comandos. — Não vai doer nada! — Todos dizem a mesma coisa – reagi. — Não acredito mais em vocês! — Abra a boca! – insistiu ele. Abri a boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágil quanto um recruta diante do sargento do batalhão. 

Ele enfiou um monte de coisas na minha boca e tocou o dente com um gancho. — Tá doendo? — Urgh argh hogli hugli. Os dentistas são tipos curiosos. Enchem a boca da gente de algodão, plástico, secadores, ferros e depois desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que conseguem responder apenas movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances, gradações que vão além dos limites de um sim-não. 

— A anestesia vai impedir a dor – disse ele, armado com uma seringa. — E eu vou impedir a anestesia – respondi duro segurando firme no seu pulso. Ele fez pressão para alcançar minha pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso. Ele apoiou o joelho no meu baixo-ventre. Continuei resistindo, em posição defensiva. Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça. 

A agulha penetrou na poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto. 

LÍNGUA PORTUGUESA – 8o ANO 49 

Ele voltou com a seringa. 

— Não pense que o senhor vai me anestesiar como anestesia qualquer um – disse, dando-lhe um tapa na mão. 

A seringa voou longe e escorregou pelo assoalho. Corremos os dois pra alcançá-la, caímos no chão, embolados, esticando os braços para ver quem pegava a seringa. Tapei-lhe o rosto com meu babador e cheguei antes. 

A situação se invertera: eu estava por cima. — Agora sou eu quem dá as ordens – vociferei, rangendo os dentes. — Abra a boca! — Mas... não há nada de errado com meus dentes. — A mim você não engana. Todo mundo tem problemas dentários. Por que só você iria ficar de fora? Vamos, abra essa boca! 

— Não, não, não. Por favor – implorou. Morro de medo de anestesia. Era o que eu suspeitava. É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar dentista é na hora de abrir a própria boca. Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo: 

— Você não passa de um paciente! 

Anexos:

EmyJz: Qual crônica amg?
ketleenc: postei lá
ketleenc: a crônica está escrita, e a pergunta está na foto
EmyJz: Ok só um instante
EmyJz: Dentista****
EmyJz: Espero ter ajudado
EmyJz: Ocorre*****
ketleenc: Obrigada ❤️

Respostas

respondido por: EmyJz
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Respostas:

A) A necessidade de cuidar da saúde bucal, uma vez que é bastante comum a existência de cáries e a ocorrência de dores de dente.

B) Ele retrata a cena como se fosse uma "batalha", onde ele é a vítima e o demtista o agresdor, fato meramente fictício que não occorre comumente na vida de ninguém.

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