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Não bastasse a dor de perder o filho de 15 anos, os pais do jovem ianomâmi morto no dia 9 deste mês em decorrência do novo coronavírus não poderão dizer adeus. Horas após o óbito, o corpo foi enterrado em Boa Vista (RR), onde ele estava internado, sem que a família fosse comunicada.
A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde, alega ter seguido o protocolo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que estabeleceu, em 30 de março, procedimentos excepcionais para sepultamento e cremação de corpos durante a pandemia do novo coronavírus.
Ritos fúnebres têm um papel importante nas mais diversas culturas. Para o povo ianomâmi, que conseguiu preservar sua tradição espiritual ao longo do processo de contato com a sociedade, a despedida dos mortos é entendida como vital para o bem-estar da pessoa falecida e também da comunidade.
No livro A queda do céu, o xamã e líder ianomâmi Davi Kopenawa relata a morte de sua mãe durante uma epidemia de sarampo trazida por missionários do grupo Novas Tribos do Brasil (atualmente, Ethnos360). Seu corpo foi sepultado à revelia em um local desconhecido até hoje.
"Por causa deles, nunca pude chorar a minha mãe como faziam nossos antigos. Isso é uma coisa muito ruim. Causou-me um sofrimento muito profundo, e a raiva desta morte fica em mim desde então. Foi endurecendo com o tempo, e só terá fim quando eu mesmo acabar", conta.
Separação entre mundo dos vivos e dos mortos
O antropólogo belga Bruce Albert trabalha com os ianomâmis desde 1975 e visita o território do povo anualmente. Ele é coautor da referida obra, tendo feito a ponte entre os saberes de Kopenawa e o "mundo dos brancos". Albert explica que, para esse povo, os ritos funerários têm como propósito colocar em esquecimento as cinzas dos mortos para que suas almas possam viajar às "costas do céu" e viver uma nova vida sem mal.
"A realização dessas cerimônias garante uma separação estanque entre os mundos dos vivos e dos mortos. Sem elas, as almas dos mortos voltariam sempre nos sonhos dos vivos para afligir-lhes de uma nostalgia mortífera", comenta.
Na cultura ianomâmi, o corpo do morto fica isolado da comunidade por cerca de um mês, para se purificar. A comunidade vive um luto nesse período, antes de cremar o corpo e guardar as cinzas para outro ritual. Após esse processo, não se fala mais na pessoa.
"A gente chora por aproximadamente 30 dias, de manhã, tarde e noite. É para tirar a tristeza do pensamento. Quando ela acaba, a gente encerra a despedida", explica Dario Yawarioma Urihithëri, filho de Kopenawa e vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami (HAY).
O líder indígena diz ter sido informado sobre o sepultamento do jovem por jornalistas que o procuraram para confirmar a informação. Dario lembra que a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mandatória sobre os direitos dos povos indígenas, fala expressamente na necessidade de consulta prévia aos indígenas.
"É preciso respeitar a cultura dos povos da floresta, com tradições muito diferentes da de vocês. A gente não foi informado sobre qualquer protocolo. Os familiares têm o direito de serem pelo menos avisados. Se tivessem conversado com a gente antes, poderíamos discutir entre nós e preparar a família", critica.
A situação enseja um debate sobre a possibilidade de conciliar as determinações do protocolo do CNJ, que visam limitar os riscos de contágio, e a garantia do respeito às particularidades culturais dos povos indígenas. No caso específico dos ianomâmis, Albert acredita que um meio termo poderia ser alcançado pela permissão para incinerar os corpos em hospitais urbanos e levar as cinzas aos familiares.
"Isto permitiria que eles conduzissem a parte central de suas cerimônias funerárias, nas quais as cinzas dos ossos dos mortos têm um papel crucial, sendo consideradas como bens preciosos", defende. A ideia, porém, esbarra na ausência de crematórios funerários em Boa Vista.