Gaetaninho
1 – Xi, Gaetaninho, como é bom!
2 Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
3 – Eh! Gaetaninho Vem pra dentro.
4 Grito materno sim: até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
5 – Subito!
6 Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar a direita. Mas deu meia-volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
7 Êta salame de mestre!
8 Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
9 O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
10 Mas se era o único meio? Paciência.
11 Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
12 Que beleza, rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério, noivo dela, de lenço nos olhos. Depois ele. Na boleia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO. Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
13 Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queria ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.
14 Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com mania de cantar o “Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou.
15 Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
16 Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubino, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
17 Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.
18 O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.
19 – Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
20 – Meu pai deu uma vez na cara dele.
21 – Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
22 O Vicente protestou indignado:
23 – Assim não jogo mais! O Gaetaninho está atrapalhando!
24 Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
25 O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
26 – Passa pro Beppino!
27 Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
28 – Vá dar tiro no inferno!
29 – Cala a boca, palestrino!
30 – Traga a bola!
31 Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
32 No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
33 A gurizada assustada espalhou a notícia na noite.
34 – Sabe o Gaetaninho?
35 – Que é que tem?
36 – Amassou o bonde!
37 A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
38 Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Lá no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
39 Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.
MACHADO, Antônio Alcântara. Novelas paulistanas: Brás, Bexiga e Barra Funda, Laranja-da-China, Mana Maria, Contos avulsos. 6ª ed. Rio De Janeiro: José Olympio, 1979. p.11.
Vocabulário
Subito: em italiano: já, logo, imediatamente (pronuncia-se súbito).
Araçá: cemitério da cidade de São Paulo.
Escreva um pequeno texto explicando o efeito que provoca o desenlace desse conto
Respostas
Resposta:
O desejo infantil de Gaetaninho, criança de bairro pobre, era atravessar a cidade de carro, nem que fosse no cortejo de um enterro, como acontecera com seu amigo Beppino. Chegou a sonhar que realizava o desejo, acompanhando o enterro de sua tia. Quase no final há uma reviravolta e, sem nenhuma preparação da narrativa, como se fosse a interferência do destino, Gaetaninho é atropelado por um bonde. O desenlace é a realização do sonho do protagonista: ele passeia de carro em um cortejo fúnebre, mas no veículo da frente, ou seja, em posição mais honrosa e privilegiada que a de Beppino, que deve se contentar com a boleia de um dos carros. Mas ele seguia seu próprio enterro.
Explicação:plurall
O desenlace do texto Gaetaninho de Alcântara Machado, provoca mais de um efeito. O primeiro pelo fato da vontade que ele tinha de andar em um carro. Algo que era novo na época, mas comum atualmente. O segundo efeito é a tristeza dele só conseguir seu feito em um caixão, já que morreu atropelado.
Efeitos no texto Gaetaninho de Alcântara Machado
Outros efeitos podem ser percebidos no decorrer do texto Gaetaninho de Alcântara Machado, como, por exemplo:
- Envolvimento com o personagem principal;
- Reflexão sobre um sonho tão comum hoje em dia;
- Esperança de que ele consiga realizar seu sonho;
- Tristeza no desenlace final.
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