Respostas
Resposta:
Ao contrário do que muitas vezes se supõe, não há nenhuma harmonia preestabelecida entre a democracia e a justiça. O autor examina um exemplo teórico e exemplos empíricos, mostrando que a lógica e o funcionamento da primeira podem entrar em choque com as exigências da segunda. Ao contrário da justiça, argumenta o autor, a democracia não é um valor em si mesmo. Se queremos harmonizá-las, a questão realmente importante é avaliar quais, entre os diferentes dispositivos institucionais democráticos, são mais favoráveis à realização da justiça.
ABSTRACT
Contrary to a widely held conviction, there is no pre-established harmony between democracy and justice. Theoretical and empirical illustrations are provided in order to highlight the ways in which democracy may clash with justice. It is argued that the former, in contrast to the latter, is not to be viewed as a value in itself. If we wish to harmonize them, the important question to ask is which among the numerous democratic setups is the most capable of ensuring the implementation of justice.
EM UM PECULIAR vilarejo às margens do Volga, após uma longa seqüência de brindes para assinalar o fim de um curso de verão do qual eu havia participado, um homem de seus 60 anos - professor de filosofia na Academia de Ciências e membro ativo da Fundação Gorbatchov - aproximou-se de mim. ''Você é belga", disse ele. (Ele não teria dito nada de muito diferente se eu fosse canadense ou suíço, ou mesmo espanhol). "Você sabe que para nós, habitantes da ex-URSS, a Bélgica representa algo importante. Ela constitui um raro exemplo de um Estado plurinacional bem-sucedido. Na Fundação Gorbatchov nós éramos, e continuamos sendo, muito ligados à União Soviética - não porque fosse soviética, mas sim porque era uma União. Acreditamos que somente uma União desse tipo pode garantir, não somente proteção efetiva às minorias existentes em suas diferentes regiões, mas também grau mais elevado de solidariedade entre suas regiões mais prósperas e mais pobres".
Ouvindo-o falar, senti um embaraço cada vez maior (e sem dúvida eu teria sentido a mesma coisa se fosse canadense), pensando nas mais recentes vicissitudes dos conflitos crônicos que caracterizam o Estado plurinacional que ele julgava ser tão bem-sucedido. Eu pensava, em particular, na recente exigência apresentada por várias organizações culturais flamengas de sair do sistema de seguridade social do Estado belga. De forma vociferante, elas sustentam que cada um dos dois povos que constituem o Estado belga têm o direito de determinar todas as suas transferências interpessoais, cada qual segundo suas próprias preferências e de acordo com seus próprios recursos. Visando a esse objetivo, essas organizações reivindicam insistentemente o fim do sistema existente, que transfere de Flandres (de língua holandesa, mais próspera e mais populosa) para a Valônia (de língua francesa, menos próspera e menos populosa) cerca de 3 a 4% de seus respectivos PIBs.
A conexão entre esses dois exemplos constitui um ponto de partida crucial para este artigo. Tanto a dissolução da URSS quanto o possível rompimento do sistema de seguridade social belga impediriam a implementação de qualquer concepção de justiça que envolva uma forte solidariedade entre povos diferentes. E mais, nos dois casos isso se faz apelando-se, muito corretamente, a uma preocupação com a expansão da democracia. O direito de um povo a determinar seu próprio destino, e de fazer à sua maneira suas próprias políticas sociais, está intimamente ligado, afinal, àquilo que se entende pelo ideal de democracia. Esses exemplos gêmeos motivam, assim, a tese que aqui tentarei demonstrar por meio de duas outras ilustrações: a de que a relação entre a democracia e a justiça, longe de exprimir a harmonia pré-estabelecida imaginada por boa parte da retórica política, em verdade é altamente problemática.
Resposta:
Explicação:Democracia e justiça têm ambas valor intrínseco, e não são redutíveis uma à outra. Esta é uma das intuições que quero explicitar e defender, nesta primeira reflexão sobre as relações entre a democracia e a justiça1. Parece-me equivocado o empreendimento de formular uma visão política normativa que torne uma dessas duas idéias dispensável ou redutível à outra. Essa redução é característica das formulações teóricas mais influentes de democracia competitiva, mas também pode se manifestar em concepções teóricas recentes de "democracia deliberativa". Vejamos, inicialmente, como isso se apresenta no caso do modelo competitivo.
O componente normativo da teoria competitiva da democracia pode ser descrito, em termos breves, da seguinte forma. A democracia, para essa tradição, é essencialmente um método competitivo de seleção de elites políticas (e as instituições necessárias para o funcionamento desse método). E é na natureza competitiva do regime democrático que encontramos sua razão de ser normativa: líderes políticos auto-interessados se vêem obrigados, em virtude da disputa competitiva do voto popular, a levar em conta as preferências e os interesses de não-líderes, sob pena de não se elegerem ou não se reelegerem2 Ainda que teóricos como Schumpeter e Downs não tenham muita inclinação pela reflexão normativa, podemos formular por eles a norma moral que está por trás desse raciocínio. Trata-se de uma norma de consideração igual das preferências e interesses de cada eleitor – que, como os líderes, não se supõe que sejam motivados por alguma outra coisa que não por seu interesse próprio.