• Matéria: Português
  • Autor: kaylainemenezes23
  • Perguntado 5 anos atrás

A ÚLTIMA CRÔNICA

A caminho de casa, entro num botequim da

Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na

realidade estou adiando o momento de escrever. A

perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado,

de coroar com êxito mais um ano nesta busca do

pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu

pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu

disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que

a faz mais digna de ser vivida. Visava ao

circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do

acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas

palavras de uma criança ou num acidente doméstico,

torno-me simples espectador e perco a noção do

essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça

e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete

na lembrança: “assim eu quereria o meu último

poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço

então um último olhar fora de mim, onde vivem os

assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos

acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de

mármore ao longo da parede de espelhos. A

compostura da humildade, na contenção de gestos e

palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma

negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda

arrumadinha no vestido pobre, que se instalou

também à mesa: mal ousa balançar as perninhas

curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao

redor. Três seres esquivos que compõem em torno à

mesa a instituição tradicional da família, célula da

sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo

mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o

dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda

o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta

no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe

limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa,

como se aguardasse a aprovação do garçom. Este

ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se

afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para

os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua

presença ali. A meu lado o garçom encaminha a

ordem do freguês. O homem atrás do balcão apanha

a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho –

um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma

pequena fatia triangular.

A negrinha, contida na sua expectativa, olha

a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom

deixou à sua frente. Por que não começa a comer?

Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno

à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de

plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai

se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha

aguarda também, atenta como um animalzinho.

Ninguém mais os observa além de mim.

São três velinhas brancas, minúsculas, que a

mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E

enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo

e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a

menininha repousa o queixo no mármore e sopra com

força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a

bater palmas, muito compenetrada, cantando num

balbucio, a que os pais se juntam, discretos:

“Parabéns pra você, parabéns pra você…”

Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-

las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo

com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A

mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe

a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que

lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim,

satisfeito, como a se convencer intimamente do

sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a

observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se

perturba, constrangido – vacila, ameaça abaixar a

cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se

abre num sorriso.

Assim eu quereria minha última crônica: que

fosse pura como esse sorriso.

Fernando Sabino. In: Para gostar de ler.

São Paulo: Ática, 1979-1980.

* Que mensagem essa crônica trouxe para você?​

rápido

Respostas

respondido por: arthurchaves77
0

Resposta:

e que um paulista e hum fraco te falta ódio

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