EU, A FALECIDA
Se eu não fosse eu mesma, ia achar que era eu a falecida. Me deu um sobressalto, quando li no
jornal: uma Rita? Belisquei, doeu, logo não era eu. Problema de música alta no prédio, também tenho, ainda
que do lado oposto do front: não boto o volume no máximo, mas sim implico com quem o faz, embora jamais
fazendo uso de arma branca ou magia negra. Pior de tudo: sou igualmente síndica (mas quem não é?).
Homônimos à parte, senti muito pela Rita e pelo bancário, que acabaram com suas vidas, ainda que
em sentidos diferentes. Sentimento maior pelo fato de ambos serem tão emblemáticos - se não fossem, não
estariam colecionando adeptos entre a população, nos comentários apaixonados que defendem um e outro
com a gana de uma torcida organizada.
Tem gente que se assusta com as entrevistas dos "populares": você viu, um fulano defendendo que
tinha mais era que matar mesmo? Não me assusto. Talvez me assuste de não acontecer com mais
frequência, tamanha a hostilidade que nos ronda nas vizinhanças, qualquer vizinhança. As fúrias contidas.
As invasões de umas vidas sobre as outras.
Hoje olhamos para trás e falamos do velho oeste como a terra sem lei, do cada-um-por-si. Existem
outras. Algumas, terras-sem-lei no sentido antigo. Mas nas mais institucionalizadas das cidades, com polícia
e exército e semáforos e leis do trânsito, também nelas há um reduto inexpugnável de velho oeste: a vida
privada das vizinhanças.
No futuro, se houver um e se ele for melhor do que o presente, alguém pode olhar para trás e pensar
de nós: olha lá, aquele tempo do velho oeste. Naquele tempo, dirá meu tataraneto mais feliz que eu, naquele
tempo não existia lei para as coisas pequenas. Naquele tempo eles achavam que só as ditas coisas grandes
valiam o esforço de uma legislação de verdade e deixavam os vizinhos se comerem uns aos outros, com as
suas diferenças, desesperos e loucuras particulares vazando por debaixo da porta.
Um amigo, outro dia, foi sair do prédio onde morava. Não deu: tinha um caminhão parado na frente
da garagem. Ele pediu: moço, preciso sair, dá para o senhor tirar o caminhão? "Não dá não", respondeu o
moço. Meu amigo, então, ligou para a polícia, a qual informou não ter nada a ver com isso. "Se eu for lá e
der 10 facadas no motorista, aí vocês têm algo a ver com isso?" Como foi antes do caso da Rita, a polícia
continuou impassível. E só se moveu quando ele, que é médico, ameaçou com processo se algum doente
morresse por causa de seu atraso.
Tem lei para assassinato, mas não tem para música alta. Ou melhor, tem: mas lei sem punição não
é lei. Será proibido fechar a garagem de alguém? Mas se for, e a polícia não fizer nada, de que adianta a
lei? O que custa mais: um sistema penal caríssimo para os crimes cabeludos, ou um sistema de multas
efetivo que preserve a sanidade, que previna a violência extrema através da coibição da violência insidiosa,
aquela que vai rios envenenando aos poucos?
Meu tataraneto vai contar que há muito tempo, talvez no começo do terceiro milênio, criaram enfim
uma lei do cotidiano, baseada na necessidade do respeito mútuo, da convivência possível entre os que são
compulsoriamente próximos. Não uma lei de brincadeirinha - lei efetiva, eficiente. Que descobriram, enfim,
que era melhor prevenir do que tentar inutilmente remediar (quem vai remediar as vidas da Rita e do
bancário?). Assim dirá o meu tataraneto, mais feliz que eu.
3. (PROMOVER, 2009) No texto, o episódio do médico com a polícia sugere que
(A) a polícia não cumpre com eficiência sua função.
(B) a polícia protege os motoristas de caminhão.
(C) os médicos costumam ter atitudes violentas.
(D) os médicos não respeitam as autoridades.
Respostas
respondido por:
4
Resposta:
Acho q nem sua professora sabi
beatrizperezdaluz:
sim kk
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