História de Passarinho
Um ano depois os moradores do bairro ainda se lembravam do homem de cabelo ruivo que enlouqueceu e sumiu
de casa. Ele era um santo, disse a mulher levantando os braços. E as pessoas em redor não perguntaram nada e nem
era preciso, perguntar o que se todos já sabiam que era um bom homem que de repente abandonou casa, emprego
no cartório, o filho único, tudo. E se mandou Deus sabe para onde.
Só pode ter enlouquecido, sussurrou a mulher. Mas de uma coisa estou certa, tudo começou com aquele passarinho,
começou com o passarinho. Que o homem ruivo não sabia se era um canário ou um pintassilgo, Ô! Pai, caçoava o filho,
que raio de passarinho é esse que você foi arrumar?!
Não sei, filho, deve ter caído de algum ninho, peguei ele na rua, não sei que passarinho é esse.
O menino mascava chicle. Você não sabe nada mesmo, Pai, nem marca de carro, nem marca de cigarro, nem marca
de passarinho, você não sabe nada.
Em verdade, o homem ruivo sabia bem poucas coisas. Mas de uma coisa ele estava certo, é que naquele instante
gostaria de estar em qualquer parte do mundo, mas em qualquer parte mesmo, menos ali. Mais tarde, quando o
passarinho cresceu, o homem ruivo ficou sabendo também o quanto ambos se pareciam, o passarinho e ele.
Ai! o canto desse passarinho, resmungava a mulher, Você quer mesmo me atormentar, Velho. O menino esticava os
beiços tentando fazer rodinhas com a fumaça do cigarro que subia para o teto: Bicho mais chato, Pai. Solta ele.
Antes de sair para o trabalho o homem ruivo costumava ficar algum tempo olhando o passarinho que desatava a
cantar. O homem então enfiava a ponta do dedo entre as grades, era a despedida e o passarinho, emudecido, vinha
meio encolhido oferecer-lhe a cabeça para a carícia. Enquanto o homem se afastava, o passarinho se atirava meio às
cegas contra as grades, fugir, fugir! Algumas vezes, o homem assistiu a essas tentativas que deixavam o passarinho tão
cansado, o peito palpitante, o bico ferido. Eu sei, você quer ir embora, você quer ir embora mas não pode ir, lá fora é
diferente e agora é tarde demais. A mulher punha-se então a falar e falava uns cinquenta minutos sobre as coisas todas
que quisera ter e que o homem ruivo não lhe dera, não esquecer aquela viagem para Pocinhos do Rio Verde e o Trem
Prateado descendo pela noite até o mar. Esse mar que se não fosse o Pai (que Deus o tenha!) ela jamais teria conhecido
porque em negra hora se casara com um homem que não prestava para nada, Não sei mesmo onde estava com a
cabeça quando me casei com você, Velho.
Ele continuava com o livro aberto no peito, gostava muito de ler. Quando a mulher baixava o tom de voz, ainda
furiosa (mas sem saber mais a razão de tanta fúria), o homem ruivo fechava o livro e ia conversar com o passarinho.
Decorridos os cinquenta minutos das queixas, e como ele não respondia mesmo, ela se calava exausta. Puxava-o pela
manga, afetuosa: Vai, Velho, o café está esfriando, nunca pensei que nesta idade eu fosse trabalhar tanto assim. O
homem ia tomar o café. Numa dessas vezes, esqueceu de fechar a portinhola e quando voltou com o pano preto para
cobrir a gaiola (era noite) a gaiola estava vazia. Ele então sentou-se no degrau de pedra da escada e ali ficou pela
madrugada, fixo na escuridão. Quando amanheceu, o gato da vizinha desceu o muro, aproximou-se da escada onde
estava o homem ruivo e ficou ali estirado, a se espreguiçar sonolento de tão feliz. Por entre o pelo negro do gato
desprendeu-se uma pequenina pena amarelo-acinzentada que o vento delicadamente fez voar. O homem inclinou-se
para colher a pena entre o polegar e o indicador. Mas não disse nada.
Calmamente, sem a menor pressa o homem ruivo guardou a pena no bolso do casaco e levantou-se com uma
expressão tão estranha que o menino parou de rir para ficar olhando. Repetiria depois à Mãe, Mas ele até que parecia
contente, Mãe, juro que o Pai parecia contente, juro! A mulher então interrompeu o filho num sussurro, Ele ficou
louco.
Quando formou-se a roda de vizinhos, o menino voltou a contar isso tudo mas não achou importante contar aquela
coisa que descobriu de repente: o Pai era um homem alto, nunca tinha reparado antes como ele era alto. Não contou
também que estranhou o andar do Pai, firme e reto, mas por que ele andava agora desse jeito? E repetiu o que todos
já sabiam, que quando o Pai saiu, deixou o portão aberto e não olhou para trás.
(Lygia Fagundes Telles. Invenção e Memória.)
Atividade
5-Releia o último parágrafo do conto. O que teria mudado a percepção do filho sobre a estatura do pai?
6- O home ruivo desaparece e o leitor não sabe mais nada dele. Há no texto algum indício que aponte para seu possível futuro? Comente
Respostas
respondido por:
0
(5) Que o pai saiu de casa e o filho não o viu mais
(6) Não achei nenhum indicio
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