Preto e branco
Perdera emprego, chegara a passar fome, sem que ninguém soubesse; por constrangimento, afastara-se da roda boêmia que antes costumava frequentar: escritores, jornalistas, um sambista de cor que vinha a ser seu mais velho companheiro de noitadas.
De repente, a salvação lhe apareceu na forma de um americano, que lhe oferecia emprego numa agência. Agarrou-se com unhas e dentes à oportunidade, vale dizer, ao americano, para garantir na sua nova função uma relativa estabilidade.
E um belo dia vai seguindo com o chefe pela Rua México, já distraídos de seus passados tropeços, mas, tropeçando obstinadamente no inglês com que se entendiam -- quando vê do outro lado da rua um preto agitar a mão para ele.
Era o sambista seu amigo.
Ocorreu-lhe desde logo que ao americano poderia parecer estranha tal amizade, e mais tarde incompatível com a ética ianque a ser mantida nas funções que passara a exercer. Lembrou-se num átimo que o americano em geral tem uma coisa muito séria chamada preconceito racial e seu critério de julgamento da capacidade funcional dos subordinados talvez se deixasse influir por essa odiosa deformação. Por via das dúvidas, correspondeu ao cumprimento de seu amigo de maneira mais discreta que lhe foi possível, mas viu em pânico que ele atravessava a rua e vinha em sua direção, sorriso aberto e braços prontos para um abraço.
Pensou rapidamente em se esquivar -- não dava tempo: o americano também se detivera, vendo o preto aproximar-se. Era seu amigo, velho companheiro, um bom sujeito, dos melhores mesmo que já conhecera -- acaso jamais chegara sequer a se lembrar de que se tratava de um preto! Agora, com o gringo ali ao seu lado, todo branco e sardento, é que percebia pela primeira vez: não podia ser mais preto. Sendo assim, tivesse paciência: mais tarde lhe explicava tudo, haveria de compreender. Passar fome era muito bonito nos romances de Knut Hamsun, lidos depois do jantar, e sem credores à porta. Não teve mais dúvidas: virou a cara quando o outro se aproximou e fingiu que não o via, que não era com ele.
E não era mesmo com ele.
Porque antes de cumprimentá-lo, talvez ainda sem tê-lo visto, o sambista abriu os braços para acolher o americano, também seu amigo.
01) Justifique o título dado ao texto:
02) O que o texto denuncia? Justifique sua resposta
03) A vida da personagem principal passa por várias modificações, durante o texto. Indique-as.
04) Por que ele acredita que cumprimentando o amigo negro, seu emprego correria risco?
05) Por que o personagem achou seu amigo ainda mais preto?
06) O que significa a expressão "com unhas e dentes", utilizada no começo do texto? Ela foi empregada no sentido denotativo ou conotativo? Por quê?
07) Copie do texto uma passagem extremamente preconceituosa, explicando sua escolha:
08) Explique o sentido das palavras tropeços e tropeçando empregadas na frase: “... já distraído de seus passados tropeços, mas tropeçando obstinadamente o inglês...”
9) O que indica o verbo “acolher” no último parágrafo?
10) Explique por que a frase “E não era mesmo com ele”, é importante para a narrativa.
11) O desfecho da narrativa é inesperado. Se soubesse desse final, o personagem teria tomado a atitude que tomou? Justifique:
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não seifoi mal se soubesse respondia
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