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Crônica Narrativa
Dois velhinhos (Dalton Trevisan)
Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.
Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:
— Um cachorro ergue a perninha no poste.
Mais tarde:
— Uma menina de vestido branco pulando corda.
Ou ainda:
— Agora é um enterro de luxo.
Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.
Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.
Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.
Crônica Poética
Minha ilha pequena (Marina Colasanti)
Vi a foto e me apaixonei pela ilha. Não me apaixonei pela realidade, mas pela ilha imaginária que guardei para mim.
Migingo é uma ilha tartaruga que flutua no Lago Vitória.
Uma ilha tartaruga, porque inteiramente coberta por uma carapaça de tetos metálicos, os tetos dos casebres de uma só janela e porta feitos de chapas de alumínio corrugadas, e mais os telhados dos 15 bares, o da farmácia, o do salão de beleza, e os dos inúmeros bordéis. Parece que os hotéis têm o mesmo telhado.
Como tartaruga, Migingo é enorme. Como ilha, é minúscula. São dois mil metros quadrados e 400 habitantes.
Basta girar levemente a cadeira enquanto escrevo, para ter à minha frente um inteiro arquipélago, as Ilhas Cagarras, que recortam o horizonte marítimo em Ipanema. Mas ilhas em mar aberto têm a amplidão a seu serviço e são mais difíceis de amar, escapam entre os dedos, enquanto uma ilha lacustre é como uma pérola na concha ou uma matrioska dentro de outra matrioska, tesouro contido, ilha protegida dentro de outra ilha. Pois se a ilha é, como aprendemos na escola, “um pedaço de terra cercada de água por todos os lados”, um lago, por sua vez, é um pedaço de água cercado de terra por todos os lados, ou seja, uma ilha líquida.
Vista de um satélite, Migingo deve parecer pequena como um pedaço de pão boiando em prato de sopa. Mas eu a vejo no imaginário como em um mapa antigo, rodeada por monstros marítimos e por embarcações piratas.
Os monstros são os enormes peixes Perca do Nilo, predadores originários da Etiópia que foram clandestinamente introduzidos no Lago Vitória para remediar a falta de fauna lacustre causada pela pesca predatória. Remediaram a seu modo, reproduzindo-se enormemente e devorando as espécies locais, antes de se tornarem canibais, os mais fortes comendo os mais fracos. Uma Perca do Nilo pode medir até dois metros, e pesar de 200 a 250 quilos.
As embarcações piratas da realidade não têm velas infladas de caravelas, são semi canoas com motor de popa que chegam na noite para roubar dinheiro, motores de outros barcos, e os peixes Perca postos a secar. É provável que esses piratas sem gancho, mas armados com bocas de fogo, gastem nos mesmos prostíbulos onde seria entregue pelos pescadores o dinheiro que acabaram de roubar.
“Meus amigos foram às ilhas/ Ilhas perdem o homem” escreveu Drummond. E tinha razão. Os dois primeiros pescadores que, pensando em economizar combustível nas suas pescarias, foram morar em Migingo, tiveram sorte. São hoje proprietários da maioria dos casebres. Mas os que seguiram seu exemplo e se amontoaram no espaço apertado, gastam nos bares o tempo em que não estão nos barcos, e gastam com as prostitutas o dinheiro ganho quando estão nos barcos.
Eu não sou um homem. Mulheres não são citadas no poema de Carlos. Não há de ser por machismo, mas porque mulheres têm parte com as sereias.
Eu então, que levo Mar no nome, posso me apaixonar por uma ilha sem me perder. Ponho Migingo na bolsa, e a levo comigo para ser meu refúgio. Se a miséria brasileira pesar demais, se a educação for castrada nos seus mais legítimos princípios, se a cultura for transferida para os últimos lugares do interesse nacional, se a focinheira de machismo e homofobia for retirada, abro a bolsa e vou me deitar na ilha pequena e desabitada que só a mim pertence, pés na água de um lado, mãos na água do outro. E o céu, sem nuvens ameaçadoras, acima.
Explicação:
Se quiser copie apenas o título e o autor
Crônicas narrativas ,o que são ?
R:A crônica narrativa é um estilo de texto bem flexível que descreve ou narra um fato cotidiano, ação de um personagem ou um determinado acontecimento de forma leve, simples e direta, seguindo uma linha de tempo lógica.
Exemplo.
R:Dois pobres inválidos, bem velhinhos, esquecidos numa cela de asilo.
Ao lado da janela, retorcendo os aleijões e esticando a cabeça, apenas um podia olhar lá fora.
Junto à porta, no fundo da cama, o outro espiava a parede úmida, o crucifixo negro, as moscas no fio de luz. Com inveja, perguntava o que acontecia. Deslumbrado, anunciava o primeiro:
— Um cachorro ergue a perninha no poste.
Mais tarde:
— Uma menina de vestido branco pulando corda.
Ou ainda:
— Agora é um enterro de luxo.
Sem nada ver, o amigo remordia-se no seu canto. O mais velho acabou morrendo, para alegria do segundo, instalado afinal debaixo da janela.
Não dormiu, antegozando a manhã. Bem desconfiava que o outro não revelava tudo.
Cochilou um instante — era dia. Sentou-se na cama, com dores espichou o pescoço: entre os muros em ruína, ali no beco, um monte de lixo.
Crônica poética, o que são ?
R:crônica poética utiliza versos poéticos em sua composição. Dessa forma, além de traços de poesia, também contém sentimentos e emoções.
Exemplo.
R:A sensível (Clarice Lispector)
Foi então que ela atravessou uma crise que nada parecia ter a ver com sua vida: uma crise de profunda piedade. A cabeça tão limitada, tão bem penteada, mal podia suportar perdoar tanto. Não podia olhar o rosto de um tenor enquanto este cantava alegre – virava para o lado o rosto magoado, insuportável, por piedade, não suportando a glória do cantor. Na rua de repente comprimia o peito com as mãos enluvadas – assaltada de perdão. Sofria sem recompensa, sem mesmo a simpatia por si própria.
Essa mesma senhora, que sofreu de sensibilidade como de doença, escolheu um domingo em que o marido viajava para procurar a bordadeira. Era mais um passeio que uma necessidade. Isso ela sempre soubera: passear. Como se ainda fosse a menina que passeia na calçada. Sobretudo passeava muito quando “sentia” que o marido a enganava. Assim foi procurar a bordadeira, no domingo de manhã. Desceu uma rua cheia de lama, de galinhas e de crianças nuas – aonde fora se meter! A bordadeira, na casa cheia de filhos com cara de fome, o marido tuberculoso – a bordadeira recusou-se a bordar a toalha porque não gostava de fazer ponto de cruz! Saiu afrontada e perplexa. “Sentia-se” tão suja pelo calor da manhã, e um de seus prazeres era pensar que sempre, desde pequena, fora muito limpa. Em casa almoçou sozinha, deitou-se no quarto meio escurecido, cheia de sentimentos maduros e sem amargura. Oh pelo menos uma vez não “sentia” nada. Senão talvez a perplexidade diante da liberdade da bordadeira pobre. Senão talvez um sentimento de espera. A liberdade.
Até que, dias depois, a sensibilidade se curou assim como uma ferida seca. Aliás, um mês depois, teve seu primeiro amante, o primeiro de uma alegre série.
Espero ter ajudado ;)