A cadeira do dentista
Carlos Eduardo Novaes
Fazia dois anos que não me sentava numa cadeira de dentista. Não que meus dentes estives-
sem por todo esse tempo sem reclamar um tratamento. Cheguei a marcar várias consultas, mas
começava a suar frio folheando velhas revistas na antessala e me escafedia antes de ser atendido.
Na última ocasião em que botei o pé no gabinete do odontólogo – tem uns seis meses –, quando
ele me informou o preço do serviço, a dor transferiu-se do dente para o bolso.
— Não quero uma dentadura em ouro com incrustações em rubis e esmeraldas – esclareci –,só preciso tratar o canal.
— É esse o preço de um tratamento de canal!
— Tem certeza? O senhor não estará confundindo o meu canal com o do Panamá ?
Adiei o tratamento. Tenho pavor de dentista. O mundo avançou nos últimos 30 anos, mas a
Odontologia permanece uma atividade medieval. Para mim não faz diferença um “pau de arara” ou uma cadeira de dentista: é tudo instrumento de tortura.
Desta vez, porém, não tive como escapar. Os dentes do lado esquerdo já tinham se transformado em meros figurantes dentro da boca. Ao estourar o pré-molar do lado direito, fiquei restrito à linha de frente para mastigar maminhas e picanhas. Experiência que poderia ter dado certo, caso tivesse algum jeito para esquilo.
A enfermeira convocou-me na sala de espera. Acompanhei-a, após o sinal da cruz, e entramos os dois no gabinete do dentista, que, como personagem principal, só aparece depois do circo armado.
— Sente-se – disse ela, apontando para a cadeira.
— Sente-se a senhora – respondi com educada reverência –, ainda sou do tempo em que os cavalheiros ofereciam seus lugares às damas.
Minhas pernas tremiam. Ela tornou a apontar para a cadeira.
— O senhor é o paciente!
— Eu?? A senhora não quer aproveitar? Fazer uma obturaçãozinha, limpeza de tártaro? Fique à vontade. Sou muito paciente. Posso esperar aqui no banquinho.
O dentista surgiu com aquele ar triunfal de quem jamais teve cárie. Ah! Como adoraria vê-lo sentado na própria cadeira extraindo um siso incluso! Mal me acomodei e ele já estava curvado sobre a cadeira, empunhando dois miseráveis ferrinhos, louco para entrar em ação. Nem uma palavra de estímulo ou reconforto.
Foi logo ordenando:
— Abra a boca.
Tentei, mas a boca não obedeceu aos meus comandos.
— Não vai doer nada!
— Todos dizem a mesma coisa – reagi. — Não acredito mais em vocês!
— Abra a boca! – insistiu ele. Abri a boca. Numa cadeira de dentista sinto-me tão frágilquanto um recruta diante do sargento do batalhão.
Ele enfiou um monte de coisas na minha boca e tocou o dente com um gancho.
— Tá doendo?
— Urgh argh hogli hugli.
Os dentistas são tipos curiosos. Enchem a boca da gente de algodão, plástico, secadores, ferros e depois desandam a fazer perguntas. Não sou daqueles que conseguem responder apenas movendo a cabeça. Para mim, a dor tem nuances, gradações que vão além dos limites deum sim-não.
— A anestesia vai impedir a dor – disse ele, armado com uma seringa.
— E eu vou impedir a anestesia – respondi duro segurando firme no seu pulso.
Ele fez pressão para alcançar minha pobre gengiva. Permaneci segurando seu pulso. Ele apoiou o joelho no meu baixo-ventre. Continuei resistindo, em posição defensiva. Ele subiu em cima de mim. Miserável! Gemi quase sem forças. Ele afastou a mão que agarrava seu pulso e desceu com a seringa. Lembrei-me de Indiana Jones e, num gesto rápido, desviei a cabeça.
A agulha penetrou na poltrona. Peguei o esguichador de água e lancei-lhe um jato no rosto
Ele voltou com a seringa.
— Não pense que o senhor vai me anestesiar como anestesia qualquer um – disse, dando-lhe um tapa na mão.
A seringa voou longe e escorregou pelo assoalho. Corremos os dois pra alcançá-la, caímos no chão, embolados, esticando os braços para ver quem pegava a seringa. Tapei-lhe o rosto com meu babador e cheguei antes.
A situação se invertera: eu estava por cima.
— Agora sou eu quem dá as ordens – vociferei, rangendo os dentes.
— Abra a boca!
— Mas... não há nada de errado com meus dentes.
— A mim você não engana. Todo mundo tem problemas dentários. Por que só você iria ficar de fora? Vamos, abra essa boca!
— Não, não, não. Por favor – implorou. Morro de medo de anestesia.
Era o que eu suspeitava. É fácil ser corajoso com a boca dos outros. Quero ver continuar dentista é na hora de abrir a própria boca. Levantei-me, joguei a seringa para o lado e disse-lhe, cheio de desprezo:
— Você não passa de um paciente!
Pau de arara: método de tortura cujos pulsos ficam amarrados aos tornozelos, sendo a pessoa suspensa por uma vara.
NOVAES, Carlos Eduardo. A cadeira do dentista e outras crônicas. São Paulo: Ática, 2002.
QUESTÕES
A) Qual fato do cotidiano da vida das pessoas inspirou o autor a escrever a crônica?
B) Que recursos Carlos Eduardo Novaes usa em seu texto que o torna diferente do relato de um fato cotidiano?
C) Que(quais) efeito(s) o uso do diálogo provoca na escrita da crônica ?
Respostas
respondido por:
0
Resposta:
a
que todas as pessoas serem diferentes
b
pelo mesmo fate das pessoas quererem ser diferente das outras
c
das coisas serem diferente
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