• Matéria: Português
  • Autor: hardislis
  • Perguntado 4 anos atrás

O Lixo - Luis Fernando Verissimo
Encontram-se na área de serviço. Cada um com seu
pacote de lixo. É a primeira vez que se falam
- Bom dia...
- Bom dia
-A senhora é do 610
- E o senhor do 612
- Eu ainda não lhe conhecia pessoalmente...
- Pois é...
- Desculpe a minha indiscrição, mas tenho visto o seu
lixo...
- O meu quê?
O seu lixo.
- Ah...
- Reparei que nunca é muito. Sua família deve ser
pequena...
- Na verdade sou só eu.
Mmmm. Notei também que o senhor usa muito
comida em lata.
- E que eu tenho que fazer minha própria comida. E
como não sei cozinhar...
- Entendo.
- A senhora também...
- Me chame de você.
- Você também perdoe a minha indiscrição, mas
tenho visto alguns restos de comida em seu lixo.
Champignons, coisas assim...
- É que eu gosto muito de cozinhar. Fazer pratos
diferentes. Mas, como moro sozinha, às vezes sobra...
- A senhora... Você não tem família?
- Tenho, mas não aqui.
- No Espírito Santo.
Como é que você sabe?
- Vejo uns envelopes no seu lixo. Do Espírito Santo.
- É. Mamãe escreve todas as semanas.
- Ela é professora?
- Isso é incrívell Como foi que você adivinhou?
- Pela letra no envelope. Achei que era letra de
professora.
- O senhor não recebe muitas cartas. A julgar pelo seu
lixo.
- Pois é...
- No outro dia tinha um envelope de telegrama
amassado.
- É.
- Más noticias?
- Meu pai. Morreu.
- Sinto muito.
- Ele já estava bem velhinho. Lá no Sul. Há tempos não
nos víamos.
- Foi por isso que você recomeçou a fumar?
- Como é que você sabe?
- De um dia para o outro começaram a aparecer
carteiras de cigarro amassadas no seu lixo.
- É verdade. Mas consegui parar outra vez.
- Eu, graças a Deus, nunca fumei.
Eu sel. Mas tenho visto uns vidrinhos de comprimido
no seu lixo...
Tranquilizantes. Foi uma fase. Já passou
Voce brigou com o namorado, certo?
Isso você também descobriu no lixo?
- Primeiro o buque de flores, com o cartãozinho,
Jogado fora. Depois, muito lenço de papel.
E. chorei bastante, mas já passou.
- Mas hoje ainda tem uns lencinhos...
- E que eu estou com um pouco de coriza
- Ah
- Vejo muita revista de palavras cruzadas no seu lixo.
- E. Sim. Bem. Eu fico muito em casa. No saio muito
Sabe como é.
- Namorada?
- Não.
- Mas há uns dias tinha uma fotografia de mulher no
seu lixo. Até bonitinha,
- Eu estava limpando umas gavetas, Coisa antiga.
- Você não rasgou a fotografia. Isso significa que, no
fundo, você quer que ela volte.
- Você Já está analisando o meu lixo!
- Não posso negar que o seu lixo me interessou,
- Engraçado. Quando examinei o seu lixo, decidi que
gostaria de conhecê-la. Acho que foi a poesia.
- Não! Você viu meus poemas?
- Vi e gostei muito.
- Mas são muito ruins!
- Se você achasse eles ruins mesmo, teria rasgado.
Eles só estavam dobrados.
Se eu soubesse que você ia ler...
Só não fiquei com eles porque, afinal, estaria
roubando. Se bem que, não sei o lixo da pessoa ainda
é propriedade dela?
- Acho que não. Lixo é dominio público.
- Você tem razão. Através do lixo, o particular se torna
público. O que sobra da nossa vida privada se integra
com a sobra dos outros. O lixo é comunitário. É a
nossa parte mais social. Será isso?
- Bom, al você já está indo fundo demais no lixo. Acho
que...
- Ontem, no seu lixo...
- O qué?
- Me enganei, ou eram cascas de camarão?
- Acertou. Comprei uns camarões graudos e
descasquei.
- Eu adoro camarão.
- Descasquei, mas ainda não comi. Quem sabe a gente
pode...
- Jantar juntos?
- E.
- Não quero dar trabalho.
- Trabalho nenhum.
- Vai sujar a sua cozinha?
- Nada. Num instante se limpa tudo e põe os restos
fora.
- No seu lixo ou no meu?»​

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respondido por: modestomiriafernande
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????

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