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Neutralidade. O ideal de neutralidade do Estado em face de formas de bem viver ou de concepções de bem dos indivíduos e grupos sociais é uma, senão a mais exaltada, pedra angular reclamada pelos adeptos do pensamento liberal. O pensamento liberal geralmente se apresenta, em sua qualidade de corrente de filosofia política, impactante da compreensão do jurídico, a concentrar-se na afirmação da individualidade, que não pode ser constrangida ou sufocada por compreensões de bem de qualquer espécie. A sociedade liberal é uma sociedade plural, na qual convivem diferentes concepções de bem, diversos ideais de boa vida, em face dos quais o Estado deve manter-se neutro. Os resultados das concepções adotadas... não cabe ao Estado ou à sociedade questionar, o resultado é tema próprio do indivíduo, a ele deve-se ser neutro.
É dever do Estado manter-se neutro justamente por haver pautas éticas paralelas, cabendo ao indivíduo eleger e construir seu modo de bem viver, sem constrições da coletividade. Na perspectiva liberal, o centro jurídico-filosófico está na proteção da autonomia do indivíduo para definir o que é melhor para si. As rotas de boa vida não são de atribuição do Estado ou do ordenamento jurídico, são decisões individuais. Estado e coletividade devem manter-se neutros, somente ao indivíduo é permitido traçar para si o que é “bom”, definir seu caminho em práticas de éticas relacionadas aos bens e valores da sociedade.
O ponto de partida na compreensão do mundo é justamente a autonomia individual. Assegurar a autonomia individual é o foco a ser dado às estruturas estatais, aqui incluído o ordenamento jurídico. O ordenamento jurídico não pode patrocinar concepções de bem viver, não pode erigir tutela a determinado eixo de difusão cultural ou especial patrocínio votivamente endereçado a uma forma de construir a realidade ou expressá-la em uma pauta ética. Deve o jurídico concentrar-se no binômio legal/ilegal, sendo-lhe estranho invadir o tema “do que é melhor para a vida de cada cidadão”, ou do tema “o que devemos destacar como preferencial para o indivíduo”.
O pensamento liberal é forte influência na compreensão de direitos fundamentais. Delimita ele a porção de não interferência do Estado, de um Estado neutro. Este Estado neutro não pode adentrar nas linhas em que se apresenta a liberdade de expressão, afinal e circularmente: o Estado é neutro. Não cabe ao Estado invadir o destino que o indivíduo quer dar à sua vida ou ao seu corpo, pois o Estado é neutro. Não há pauta ética ou substrato a anteparar a condução do bem viver, este tema é alienígena ao Estado e à sociedade em seu todo, caso contrário, a própria sociedade conviverá com a violação à autonomia individual, com a violação ao indivíduo e ao pluralismo de concepções de bem existentes. O Estado não pode influir em programações de televisão ou em conteúdos de expressão, não pode traçar limites de disposição do próprio corpo aos indivíduos ou mesmo pode definir substancialmente uma concepção política de justiça.
A concepção política de justiça seria neutra, neutra por uma ausência de filiação a concepções de bem, neutra por afastar-se de resultados de virtudes ou éticas cívicas amparadas e fomentadas pelo Estado e pela sociedade. O pluralismo se realizaria a partir da neutralidade substancial perante concepções de bem presentes na sociedade plural. Esta compreensão liberal se apresenta como fundada essencialmente no pensamento de Rawls.
Penso que esta sustentação de neutralidade vai de encontro, choca-se com o próprio núcleo do pensamento liberal. Ao contrário de derivações de pensamento liberal pretensamente fundadas na teoria de Rawls, o próprio autor sustenta posição contrária à apresentação de neutralidade exposta nas linhas acima. O pensamento liberal falha ao tentar sustentar-se em uma neutralidade infensa ao mundo das concepções de bem. Pretendo assim demonstrar que o verdadeiro contraste dos liberais não se inicia em seu confronto com os comunitários, mas com o próprio expoente do pensamento liberal: John Rawls. Liberais contra liberais: a tentativa do Estado neutro é impraticável.
Rawls sustenta que sua concepção política de justiça, a justiça como equidade, é sobretudo uma concepção liberal, mas não é uma concepção neutra.[1] Rawls argumenta que uma concepção liberal adota a prioridade do justo sobre todas as concepções de boa vida, as concepções de bem não podem se antepor ao que seja justo. Entretanto, a concepção de justo, a formação da concepção política de justiça está ligada a concepções permissíveis do bem, que influenciam a conformação e configuração da própria concepção do justo. Rawls renega sua concepção política de justiça liberal como uma concepção procedimentalmente neutra, segundo o expoente do liberalismo, “a justiça como equidade não é procedimentalmente neutra. Não há dúvida de que seus princípios de justiça são substantivos e expressam muito mais do que valores procedimentais”.[2]