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Embora tenha começado a dirigir filmes em 1951, com Daar Doer in die Bosveld, o diretor sul-africano Jamie Uys só conseguiu verdadeiro sucesso de público internacional na fase final de sua filmografia, primeiro com o documentário cômico Os Animais Também são Seres Humanos (1974), e depois com a saga Os Deuses Devem Estar Loucos, da qual dirigiu dois dos cinco filmes que a compõe. Integrada por evidentes elementos étnicos (o que não poderia ser diferente, dada a constituição populacional da África do Sul) e, por isso mesmo, acompanhando de um grande número de debates, boicotes e atribuições de ofensa, esta comédia trabalha de maneira autoconscientemente genérica e paternalista com o imaginário do povo Sã, do qual o protagonista faz parte.
Os Sãs ou Saan que vemos representados no filme têm como território o sul do Deserto do Kalahari (diferente de tribos Saan de outras partes da região), e mesmo que exista para eles um considerável isolamento em relação aos habitantes de cidades ou pequenas vilas com ligações cosmopolitas, é evidente que o diretor faz uso da generalização para reforçar essa ausência de contato e fazer de Xi (N!xau) e sua família, indivíduos verdadeiramente inocentes, que veem em uma garrafa de Coca-Cola jogada de um avião um “presente maldito” dos deuses, um objeto que só dores e maus sentimentos gerou naquela aldeia.
O ar falsamente documental, inicialmente crítico aos costumes da grande cidade e as interferências diegéticas exploradas pelo diretor fazem de Os Deuses Devem Estar Loucos um filme que constantemente chama atenção para si, não apenas reafirmando a sua intenção ficcional, mas estando ciente das abordagens que faz para temas antropológicos e sociais, expostos ao longo de atos que se entrelaçam, começando com os Sãs em seu território nativo e terminado numa luta contra guerrilheiros políticos fugindo para o Botswana. Em tudo, trata-se de uma longa viagem de Xi, cujo objetivo é livrar-se definitivamente do “presente maldito dos deuses”. Essa jornada, porém, é entrecortada por eventos (outras jornadas pessoais de aprendizado) que se desenvolvem até encontrarem-se com Xi, que acaba tendo ele mesmo um papel de salvador dos deuses, pelas suas habilidades de reconhecimento e movimentação pelo terreno.
A forte marca cômica da obra, todavia, é colocada no bloco de Andrew Steyn (Marius Weyers), um desajeitado pesquisador que fica ainda mais desajeitado quando se encontra na frente de uma mulher. A coreografia das gags e o estilo do diretor em trabalhar esse tipo de comédia com a câmera e através da montagem (literalmente falando, pois o próprio Jamie Uys é, alem de diretor e produtor, um dos fotógrafos e o montador do filme) lembra os riscos corridos por Buster Keaton quando aparecia lidando com máquinas, e flerta com outros tipos de comédia física como as de LLoyd e Laurel & Hardy. A inocência e deliciosa bobagem de muitas dessas gags nos arrancam genuínas gargalhadas e costuram o filme de maneira simpática, atenuando o rompimento brusco e às vezes pouco orgânicos entre um ato e outro.
O contato de alguém com algo totalmente alheio à sua cultura, ao seu mundo, ao seu cotidiano sempre foi boa matéria-prima para comédias de situações. Os Deuses Devem Estar Loucos é um desses filmes, tendo um espaço geográfico não muito visto em obras do gênero e um tipo de personagem representado entre o falso documentário e a comédia de caráter étnico. Não é o tipo de humor que agrada a todos, é verdade, mas não há aqui nenhuma diminuição ou segregação cometida contra Xi ou seu povo. A abordagem para sua inocência e o paternalismo em torno dele podem ser criticáveis, mas não configuram uma reafirmação estrutural de (mal) tratamento para um isolado povo do Kalahari. O texto se mostra ciente da óbvia opção pela generalização e por brincadeiras numa linha bem específica de mostrar pessoas em situações engraçadas no cinema, fazendo isso de maneira memorável.