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Ópera dos Mortos de Autran Dourado é a história de uma casa habitada por uma mulher solteira, Rosalina, e uma criada negra, Quinquina, que lhe serve de emissário fiel entre o mundo interior do casarão e a vida rotineira de uma pequena cidade de Minas.
A casa foi concebida e construída numa espécie de delírio de grandeza por um patriarca, João Capistrano Honório Cota, que depois de um desastre político se fecha em si mesmo, punitivo e purgador.
Rosalina, a filha, recebe com a herança das terras o cultivo do orgulho e o legado do sonho. Desfeita a possibilidade de casamento com o capataz, sem dúvida por diferenças de casta, Rosalina represa na solidão da casa toda a sua marginalidade e o que é real não tarda a se diluir no ideal.
Rosalina se embriaga todas as noites, relê enredos melosos e tenta sopitar tentativas ninfomaníacas.
Ela é o veio subterrâneo, mas esotérico do romance de Autran Dourado: a decadência senhorial, o desajuste entre o tempo histórico e o tempo social.
A casa que em Ópera dos Mortos adquire contorno de coisa viva, castelo de romances medievais e jazigo de anseios frustrados, está deteriorada por fora e por dentro. É uma construção solta no espaço e no tempo, pois o nobre e a sua gerdeira pararam ali todos os relógios.
A história é narrativa por excelência, mas no seu psicologismo recusa a linearidade. Atraído pela verossimilhança, que em Faulkner se realiza em termos puramente ficcionais, Autran Dourado optou pela comunicabilidade.
Preferiu fazer com que os personagens falassem em compridos monólogos, e como ponto de sustentação da trama, elegeu um narrador impessoal. O autor está, portanto fora do texto: nada sabe, nada viu: apenas tece, nos seus pressentimentos, a débil teia ficcional, alimentada de vivências.
Em Ópera dos Mortos de Autran Dourado, a linguagem não será a do escritor – mas a dos sentimentos pessoais, fermentados, cristalizados e expressos segundo os meios de comunicação de cada protagonista.
No entanto, a linguagem do romance é uma só: com ligeiras diferenças, exprime o monólogo de Juca Passarinho, o fluxo de Rosalina, as intervenções do narrador invisível.
Autran Dourado utiliza a linguagem oral que constitui a média de expressão do homem brasileiro do interior, desde que as diferenças de fortuna, ilustração e modo de vida não sejam acentuadas.
Essa oralidade representa ao mesmo tempo uma forma de dizer e uma forma de sentir. É uma cristalização anímica que transcende a voz pessoal para abranger os limites de comunicação grupal.
Quem traz a herança da vida interiorana não se espanta que Rosalina, filha de um senhor de terras, mas sem educação formal, e Juca Passarinho, um vagabundo que pretende viver a vida fácil, falem quase do mesmo modo. A diferença está nos seus perfis psicológicos.
Essa oralidade denuncia, porém, uma contribuição consciente de Autran Dourado: a imagística. Os símbolos e metáforas que escapam dos monólogos, num fraseado literário de efeito, devem ser imputados à representação da ópera, ao seu conteúdo barroco – e nesse ponto se impõe, na sua acepção ampla, o estilo. O barroco não está apenas no estilo da casa.
Nos seus objetos de que há uma descrição sucinta, mas pesa também nas almas, por mais lineares que estas pareçam em seus comportamentos. De forma que o estilo, o estilo de quem pretende narrar e expor ao mesmo tempo as causas e consequências é igual à oralidade mais os arabescos literários.
O título do romance Ópera dos Mortos de Autran Dourado já é significativo. A ópera, segundo uma de suas definições, é uma “organização temporal de sons e silêncios”.
E os sons são preenchidos pela melodia individual (no romance Autran Dourado, os monólogos que constitui, por sua vez, uma das características da arte barroca em música).
Na protofonia do romance temos a apresentação do cenário, a casa da gente Honório Cota, feita de forma impessoal, através do narrador invisível. O leitor é interpelado e convocado insistentemente a ver, sentir, participar.
O melodrama está armado e resumidas suas intenções. A oferta de comunicabilidade prossegue nos cantos individuais, que interpenetram num simulacro de ação simultânea: quando Rosalina está prestes a sair de cena, ouve o barulho de carro de boi.
É Juca Passarinho, o andarilho, caçador sem munição, que entra na cidade e é logo seduzido pelo casarão do Largo.
Ele e Rosalina, tão diferentes em tudo, estão amadurecidos para um desfecho em suas vidas – e as vivências acumuladas em ambos transbordam, precipitando a maior cena do romance, o encontro na casa silenciosa, altas horas da noite, entre uma mulher em estado de sonho e um homem em toda lucidez.
Este é em todo o romance o maior teste de Autran dourado, que se equilibra perfeitamente à beira do melodrama, em três ou quatro páginas densas, imponentes e sensuais.