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Luiz Gama nasceu um homem livre no Estado da Bahia, no século 19. Filho de uma mulher africana preta e um português branco, ele foi vendido com apenas 10 anos para quitar uma dívida de jogo do pai. Escravizado, Gama aprendeu a ler e conquistou a própria liberdade através da lei. Tornou-se depois um ativista do abolicionismo, que libertou mais de 500 pessoas escravizadas - a começar por si mesmo.
Entre os principais argumentos utilizados por Gama para salvar homens, mulheres e crianças pretas estava a lei que extinguia o tráfico negreiro para o Brasil, mas que era ignorada pelos criminosos. Apesar de não ser um advogado formado por uma universidade, ele possuía um vasto conhecimento sobre as leis da época e conseguiu autorização do Poder Judiciário do Império para advogar, sendo o primeiro negro na história do Brasil a estar na posição de defensor nos tribunais.
A história de Gama vira filme pela primeira vez com roteiro de Luiz Antônio e direção de Jeferson De. A narrativa de Doutor Gama é dividida em três partes e tem início com uma breve demonstração da relação que o protagonista tinha com mãe e pai. Em poucos minutos vemos a criança (Pedro Guilherme) sendo vendida. Naquele momento Gama perde três coisas que, apesar de abstratas, têm um significado extremamente concreto: a liberdade, a confiança no homem branco (representado pelo pai) e o direito de ter um calçado. As cenas seguintes mostram o menino começando a entender as regras sórdidas da escravidão e se conectando com novas figuras paternas e maternas - que ele perde em seguida. Uma passagem que nos conta, sem gastar tempo, que era impossível para um escravizado conquistar um porto seguro.
O ciclo da infância se fecha e a cena seguinte nos mostra um Gama jovem (Angelo Fernandes) sem perspectivas, até ter contato com a literatura. A última cena dessa segunda parte faz uma conexão direta com o final da primeira, pois é nela que Gama reassume o seu lugar de homem livre e reconquista seu direito de usar um calçado. O diretor fez questão de incluir essa simbologia no filme porque ela segue viva até hoje. Como diria Emicida, “dinheiro é a desgraça do povo, mas cê já viu o sorriso no rosto de quem ganhou um boot novo?”. Um tênis representa muito para um jovem de periferia e essa cena dialoga muito bem com esse público.
Na fase adulta e livre, Gama (César Mello) já aparece como um advogado maduro, envolvido com um caso tido como impossível de vencer. O julgamento de fato não existiu, mas foi escrito no filme com base em outros casos em que Gama trabalhou, o que deixa o relato mais dramatizado.
O principal destaque na narrativa é a escolha de não espetacularizar o sofrimento negro para contar a história de Gama; é uma decisão provavelmente tomada porque as pessoas por trás das câmeras também são negras. Numa época em que produções hollywoodianas sobre o flagelo do escravagismo e sua herança cultural nos EUA flertam com a exploração, o filme brasileiro aborda assuntos extremamente delicados como escravidão, racismo, estupro e marginalização de pessoas pretas sem reproduzir essas violências para falar sobre elas. A trajetória de virada de Gama tem prioridade sobre o choque, um enfoque à altura da importância da sua luta abolicionista.