• Matéria: Português
  • Autor: manuelamartinssales1
  • Perguntado 7 anos atrás

Redação para um Brasil sem futuro

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respondido por: lucasdnvdea4554
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Com que lidam os arqueólogos? Com vestígios, sombras, ruínas.

O Brasil, caro arqueólogo, é o espaço ideal para investigar as ruínas do futuro.  

O Brasil era chamado de “o país do futuro”. A expressão foi consagrada pelo escritor austríaco e judeu Stefan Zweig, como título de um livro escrito, parece, por encomenda do presidente Getúlio Vargas: "Brasil, país do futuro".

Stefan Zweig, refugiado da Segunda Guerra, suicidou-se com sua companheira na cidade de Petrópolis, na Serra dos Órgãos, perto do Rio de Janeiro. O futuro se lhe desabava, com as vitórias nazistas e fascistas na Europa. Não sobreviveu ao auge da guerra.

Nós, da esquerda, nunca gostamos da encomenda nem da frase. Pobres de nós. Primeiro a ditadura militar de 1964 glosou a frase num de seus motes de propaganda: “O Brasil era o país do futuro. Agora, o futuro chegou”. E o futuro era aquilo, a negação da esperança, o horror consentido, desfrutado, ou suportado. Ali começou o suicídio do futuro no Brasil. Como tantos lutadores da liberdade, e não só no Brasil, o futuro começou a “ser suicidado”.  

Depois os neoliberais completaram esse suicídio do futuro. A história deixava de ser: a vida era aquilo ali, a administração da iniqüidade. A disciplina da economia passou a ser a arte de explicar o insuportável, e a política o engenho de geri-la.  

O Brasil, como queríamos há tantos anos nós, os da esquerda, deixou de ser o país do futuro. Mas não porque ele chegara, ou nós, afinal, chegássemos a algum caminho presente. O Brasil tornou-se um país sem futuro. O país do “cronicamente inviável”, como diz o título de um filme que fez fama nestas épocas.  

Do filme eu até gostei. Do título não. Mas ficou-me a lição: às vezes, a gente constrói pensando em linhas certas os títulos tortos dos grandes erros. Passamos nós, os da esquerda que crescemos depois da guerra que levou Zweig e a companheira ao suicídio, boa parte de nosso tempo criticando acerbamente a Consolidação das Leis do Trabalho. Acusávamos a nefanda lei de “fascista”, de inspirada na “Carta del Lavoro” de Mussolini.  

Depois nos demos conta de que não era nada disso. A tal da lei era apenas um ajuntamento de princípios e meios baseados nas doutrinas de Augusto Comte, com algum verniz corporativo no que tangia a organização sindical. Que ironia! Ajudamos a pavimentar a sua abolição sim. Mas não fomos nós e a nossa ânsia de liberdade que a aboliram.  

A ditadura de 1964, essa coveira (ou caveira) do futuro, começou a aboli-la. Depois vieram os neoliberais e afastaram grande parte da população do alcance da lei. Criaram a “informalidade”, ou seja, a exclusão consentida, degustada, ou suportada apesar de insuportável.  

O governo de JK quis avançar 50 anos em 5. Durante os vinte e um anos de ditadura no Brasil o tempo tornou-se espesso, opaco. As pessoas passaram, o tempo não. Depois veio a democracia, e a construção de uma nova hegemonia conservadora. E ao final do século XX, de 1994 a 2002 da era cristã, o Brasil conseguiu o milagre de voltar 80 anos em 8.  

Que façanha! Os neoliberais implodiram o conceito de trabalho como realização pessoal e coletiva. Destruíram e ainda estão destruindo a legislação do e para o trabalho a marretadas, ou deletações, como se quiser. Pelo menos nós, os da esquerda, temos inteira liberdade para escolher as palavras. Já é alguma coisa, pois durante a ditadura nem isso tínhamos.  

Eu moro numa cidade chamada de São Paulo, pois foi fundada no dia em que este santo teria se convertido ao cristianismo. Ele (o santo) teve uma visão que o derrubou do cavalo. Pois eu também tive nesses dias, nessa cidade, uma visão lancinante. Ou rocinante, já que, como o amigo arqueólogo pode ver, eu guardo em minha alma algo daquela de um certo cavaleiro da Mancha, embora na minha esse algo seja temperado por um pouco de ironia aprendida com seu fiel escudeiro, Sancho, que andava pacientemente num burrico.  

Tomei o metrô desta cidade na direção de sua periferia das mais remotas. Por um desses azares da sorte, sentei-me de costas para o destino. E vendo o caminho desta posição compreendi afinal a metáfora do anjo de Walter Benjamin, aquele que, saído do paraíso, vai para o futuro de costas, vendo a história como a construção de ruínas.  

Fomos, eu e o metrô, avançando (eu de costas) pelos bairros que antes faziam parte do cordão industrial desta cidade, e que puxavam seu apelido (com o estado) de “locomotiva do Brasil”. Fomos passando pelas antigas fábricas, as antigas casas alinhadas dos bairros operários. E fomos vendo esse cenário de um Brasil que caminhara ali para o futuro, ou o que se pensava sê-lo, transformado em ruínas, em paredes rabiscadas com hieróglifos incompreensíveis, com sujeira e abandono por toda parte.  




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