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Várias evidências excluem a hipótese de que o Sars-CoV-2 tenha tido uma origem laboratorial. No caso da Sars, sabe-se que o vírus foi transmitido de morcegos para civetas e desses hospedeiros intermediários para o homem, mas para o Sars-CoV-2 essa questão permanece em aberto. Em dezembro de 2019, iniciou-se um surto que atingiu cerca de 50 pessoas na cidade de Wuhan, na China. A maioria dos pacientes tinha sido exposta ao mercado Huanan. Esse mercado comercializava frutos do mar, mas também animais silvestres, frequentemente vendidos vivos ou abatidos no local. Contudo, vários pacientes desse surto inicial não tiveram relação epidemiológica com o mercado, abrindo a possibilidade de que outras fontes de infecção pudessem estar envolvidas.
Ao lado de vírus encontrados em morcegos, vários artigos relataram a presença de coronavírus em pangolins, com similaridade de 85,5-92,4% com o genoma do Sars-Cov-2. Pangolins são vendidos ilegalmente na China pela sua carne, escamas e uso na tradicional medicina chinesa. Embora em princípio não fossem vendidos no mercado de Wuhan, não é possível descartar a sua possível venda ilegal.
O genoma do Sars-CoV-2 apresenta 96% de similaridade com o do vírus RaTG13, obtido do morcego Rhinolophus affinis, valor bastante superior à similaridade observada com vírus de pangolins, o que sugere que o pangolim não tenha transmitido o vírus diretamente ao homem. O RBD do SARS-CoV-2 é capaz de aderir com alta afinidade no receptor ACE2 humano, mas, dos seis resíduos de aminoácidos identificados como essenciais para a ligação, somente um é compartilhado com o Sars-CoV, causador da Sars, ou com o RaTG13. Isso indica que o Sars-CoV-2 desenvolveu através da seleção natural um novo sítio otimizado para a interação com o receptor humano. Por outro lado, vírus de pangolins, apesar de terem menor semelhança genômica com o Sars-CoV-2 do que vírus de morcego, apresentam uma região RBD muito mais parecida, conservando cinco dos seis resíduos de aminoácidos essenciais para a interação.
Segundo Alexandre Hassanin, pesquisador da Universidade de Sorbonne, é possível que o vírus transmitido a humanos tenha sido um produto quimérico resultante da recombinação entre um vírus próximo ao RaTG12 de morcego e um segundo vírus próximo do vírus de pangolim. Portanto, parece faltar um elo perdido que possa explicar a origem do Sars-CoV-2.
Outra descoberta interessante é a existência de uma inserção de uma sequência polibásica antecedida por uma prolina (resíduos PRRAR) na junção das porções S1 e S2 da proteína S. Essa região pode estar envolvida na clivagem por furina e outras proteases do hospedeiro e ter implicações na transmissibilidade do vírus e na definição da especificidade de seus hospedeiros. O sítio de clivagem é encontrado no Sars-CoV-2, mas não nos coronavírus de morcegos e pangolins.
Segundo as revisões de Andersen e colaboradores, e Zhang e Holmes, para que um vírus precursor adquirisse por um processo evolutivo os sítios RBD de alta afinidade e de clivagem por proteases, seria necessária a sua passagem por um hospedeiro intermediário com alta densidade populacional, que tivesse uma proteína ACE2 semelhante à humana. Após a aquisição dessas características, o vírus teria se transferido para o homem. Alternativamente, o vírus progenitor do SARS-CoV-2 poderia ter adquirido o sítio polibásico após a transferência zoonótica. Assim, o vírus teria se multiplicado em humanos de forma críptica sem causar sintomatologia grave e, após a aquisição dessa característica, teria aumentado sua transmissibilidade e patogenicidade, desencadeando assim a covid-19. Segundo David Robertson, pesquisador da Universidade de Glasgow, “o hospedeiro intermediário é a peça que falta no quebra-cabeça: como todas essas pessoas se infectaram?”.
Link da matéria: https://jornal.usp.br/artigos/covid2-o-que-se-sabe-sobre-a-origem-da-doenca/