Leia a crônica abaixo.
Expedição à padaria
por Vanessa Barbara
Na segunda-feira dia 6 de abril, depois de 14 dias de total
isolamento, saí de casa para comprar pão. Com o coração acelerado
e o passo meio trôpego, percorri os 290 metros que separam minha
residência da padaria da esquina. Pensei imediatamente em Charles
Darwin singrando os mares a bordo do HMS Beagle, em James
Cook mapeando terras desconhecidas, em Amelia Earhart com o
vento no rosto enquanto sobrevoava o oceano e em Buzz Aldrin
fazendo xixi na Lua. Quase chorei na fila do pão. Por pouco não
pedi a quantia errada de bisnagas.
A expedição durou no máximo 15 minutos e me senti
inspirada para compor uma versão estendida de Os Lusíadas em
dodecassílabos parnasianos. Pensei também em fazer uma
transmissão ao vivo para emocionar os amigos em suas respectivas
quarentenas. Mas acabei desistindo porque achei que podia parecer
ostentação. Antes de sair, botei o álcool em gel na bolsa e vesti uma
máscara de tecido, mas quase sofri um bloqueio criativo quando fui
escolher a roupa. Esqueci como a gente se vestia quando saía de
casa. Parece que eu tinha um par de calças jeans. Onde mesmo que
eu costumo guardar os sapatos?
Em meados do mês passado, entrei para os casos suspeitos da
covid-19. Tive febre baixa, dor de garganta, perda de olfato, enjoo
e uma dor de cabeça forte. Depois de um exame clínico que
descartou infecção bacteriana, a médica me mandou para casa e
estipulou o isolamento pelo período de duas semanas. (Ela marcou
no meu atestado: “Z29.0”, o que me pareceu coisa de espião, mas
era apenas a classificação da Organização Mundial de Saúde para
isolamento em casos de doenças transmissíveis.)
Respeitei a prescrição médica e não saí nem para pegar as
revistas deixadas no capacho. Meu marido fazia as compras
semanais no mercado e ia buscar pão de vez em quando. Eu tentava
me recuperar na medida do possível. Ao final dos 14 dias, e depois
de receber o resultado negativo do exame da covid-19, eu me
ofereci para singrar as calçadas rumo à padaria.
Foi mais bonito do que eu sonhava. O céu estava azul, havia
pássaros nos postes e um fétido chorume emanando dos sacos de lixo empilhados no meio-fio. (O olfato parecia feliz em ter
voltado.) Troquei enigmáticas elevações de sobrancelha com
transeuntes que passavam do outro lado da rua e que também
estavam parcialmente ocultos em suas máscaras. Tentei sorrir com
os olhos para os atendentes da padaria, que perguntaram como
estava a minha filha e comentaram que o dia estava lindo demais
para ficar em casa. Respondi: “Paciência!” e tentei dizer algo
engraçado.
Descobri que boa parte da comunicação se dá por meio da
expressão do rosto e de sorrisos, e que é muito difícil ser irônico
atrás de uma máscara. Gesticulei amplamente, como se falasse uma
língua estrangeira a dez metros de distância. Esquadrinhei a mesa
de bolos caseiros como se estivesse diante de uma caverna de
tesouros. Desisti de abraçar todo mundo. Botei as compras na
minha sacola de pano, paguei a comanda e voltei para casa sob a
nuvem diáfana do maravilhamento. “A Terra é azul. Como é
maravilhosa. Ela é incrível!”, posso ter dito ao chegar em casa,
parafraseando certo cosmonauta.
Em tempos de quarentena, a saudade de circular pela cidade
chega a doer. Até descer com o lixo parece uma aventura
extraordinária, que só efetuamos uma vez a cada três dias. Sair para
ir à padaria, então, é um feito mais cobiçado que escalar os Sete
Cumes. Não sei quando minha jornada se repetirá, já que o
isolamento doméstico permanece – e deve se intensificar daqui
para a frente. Só sei que agora toda breve saída é passível de se
tornar uma epopeia em versos a ser narrada para a próxima geração:
“Cesse tudo o que a Musa antiga canta,/ que outro valor mais alto
se alevanta”, já dizia o velho Camões.
Minha filha, de 1 ano e 9 meses, não sai de casa há mais de
30 dias. Uma das nossas atividades favoritas agora é relembrar,
juntas, todos os detalhes dos nossos piqueniques no parque, as
tardes de Carnaval, os passeios de ônibus, as voltas no quarteirão e
as viagens de metrô. Como se fossem épicas expedições a uma
civilização que não deve ser esquecida.
1.Que sentimentos ou emoções a crônica nos despertou? Raiva, medo, alegria,
impaciência, curiosidade, nostalgia (saudades)?
2. A linguagem era atual? Era de difícil compreensão?
3. O que ou em que passagens as ideias e a narrativa não ficaram claras?
4. Qual é o assunto central da crônica?
5. Qual a personagem ou os personagens que aparecem na crônica? Como eles estão
descritos no texto? Qual o olhar do cronista para eles?
6. O autor fazia parte da situação narrada ou estava como observador, de fora?
Quais são as marcas no texto que nos mostram isso?
Respostas
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Resposta:
A acumulação de capital, os cercamentos.
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